A jornalista e escritora canadense Naomi Klein, autora de "Sem Logo"
Naomi Klein, militante antiglobalização, autora entre outros de "Sem Logo" fala ao La vanguardia o que estamos vivendo atualmente: uma democracia perdida e ditatorial. Suas observações convocam a uma reflexão do nosso atual mundo "globalizado" e talvez uma transição um tanto assustadora da democracia. "Me chamam de radical só por defender a saúde pública!, afirma a professora da London School of EconomicsTenho 37 anos e vejo regressar a barbárie. Nasci no Canadá e sei o que é o Estado do bem-estar. Tenho família sem filhos. Qualquer vida humana tem o mesmo valor. Publiquei "A Doutrina do Choque": denuncio o perigoso idealismo do capitalismo integralista."
Ela é atraente, simpática, tem bom gosto para o desenho e encanto midiático. Quando toda a mídia escrita está reduzindo os textos, Naomi escreveu um livro de 605 páginas e 60 de notas: os jovens -afirma- estão sedentos de explicações. Excelente documentação, mas talvez incorra em algumas simplificações e sofra de certa visão idealista... Mas então? Milton Friedman e os neocons da American Enterprise, que dão cobertura ideológica a Washington, também incorreram em simplificações grosseiras da realidade e em idealismos inimigos do senso comum. Além disso, Naomi não invade países, só livrarias.
O capitalismo fundamentalista sugere o protecionismo. No fundo, a história da globalização é que os de sempre mantenham seus privilégios.
A entrevista:
La Vanguardia - Acreditava que a senhora fosse esquerdista radical, mas defende a social-democracia...
Naomi Klein - É o que me acontece nos EUA: digo que um doente não deveria morrer -como morrem lá todos os dias- só porque não tem dinheiro para pagar um hospital... e por isso me chamam de esquerdista radical!
LV - Lá não conheceram a saúde pública.
Klein - E hoje vocês na Espanha têm mais cobertura de saúde que os alemães: não deixem que a reduzam, como estão fazendo lá.
LV - Como o mundo muda! A Espanha dando aulas de Estado do bem-estar à Alemanha!
Klein - A Alemanha desmonta sua assistência pública porque a direita a considera culpada de seus problemas e não vê que é parte da solução. O fundamentalismo capitalista sempre atacou as conquistas das social-democracias locais. Para isso aproveita os choques econômicos, ou naturais, como o furacão Katrina ou o tsunami. Senão os cria, como fez no Chile de Allende e faz hoje no Iraque.
LV - De que maneira aproveitam os choques?
Klein - No Chile, o golpe de Estado da CIA acabou com o incipiente Estado do bem-estar social-democrata e instaurou uma ditadura de livre mercado à sua medida; fez o mesmo no Irã de Mosadeg ou ao tornar impossível na Rússia a social-democracia moderna, que era o primeiro modelo da jovem democracia russa. Em relação à China, já estão encantados com sua ditadura local com livre mercado global.
LV - E como exploram um furacão?
Klein - As construtoras aproveitaram os destroços do Katrina para se apoderar dos terrenos dos bairros e também, graças a ele, os neocons substituíram a escola pública e igualitária por seu sistema particular de ensino.
LV - Um furacão é casual. A senhora não vê conspirações demais?
Klein - Eu também sou jornalista. Vou aonde acontecem as coisas, pergunto e explico. Agora mesmo, nos gigantescos incêndios na Califórnia, estamos vendo que o corpo de bombeiros foi privatizado!
LV - Isso é novo.
Klein - As urbanizações ricas podem pagar um serviço de bombeiros próprio que as salvou das chamas graças a sistemas de prevenção que borrifam suas propriedades com líquido antichamas. Os que não podiam pagar bombeiros próprios ficaram sem lar.
LV - Aqui, todo verão, Tróia arde.
Klein - Pois cuidado: vivemos uma ofensiva global contra os mecanismos de solidariedade de um país para substituí-los por outros que dêem lucros na Bolsa. Esses bombeiros privados da Califórnia, por exemplo, não trabalham para a prefeitura mas para as multinacionais de seguros.
LV - Qual é o inimigo do livre mercado?
Klein - O grande inimigo do capitalismo integralista não são as ditaduras -eles adoram a chinesa- nem os islâmicos, mas as social-democracias locais mais pragmáticas. Washington combate os Estados eficazes e solidários que redistribuem bens e serviços, porque o incomodam quando tenta aplicar sua utopia capitalista global.
LV - Nos anos 1960, a CIA, para frear a social-democracia, criou o mito do suicídio sueco.
Klein - No Iraque, a Al Qaeda e a CIA dividem o mesmo inimigo: os intelectuais iraquianos. Querem eliminá-los, junto com qualquer vestígio de Estado ou auto-organização iraquiana. Assim podem implantar do zero suas utopias neocoloniais. Quando um choque é natural, como o tsunami de 2004 no Sri Lanka, também aproveitam: as multinacionais do turismo expulsam os pescadores de suas moradias para se apoderar das praias e enchê-las de hotéis e campos de golfe. Aqui na Espanha você entenderá isso do litoral...
LV - E como!
Klein - No Iraque, os dogmáticos profetas americanos do capitalismo integralista arrasaram qualquer vestígio do Estado iraquiano e puseram o país nas mãos dos mercenários e de seus contratantes. E funciona esse dogma do livre mercado eficaz? Pois ainda não conseguiu o que o sanguinário Saddam conseguia: que todos os iraquianos tivessem luz e água.
LV - Por que eles erram tanto, como diz a senhora?
Klein - Porque o integralismo radical capitalista de Milton Friedman, a doutrina oficial de Washington, é um idealismo dogmático, tão obcecado por aplicar um livre mercado puro que arrasa qualquer vestígio anterior de auto-organização social. Para instaurar seu ideal capitalista, criticam e, se puderem, arrasam as instituições de um país e, se conseguirem, então ocorre o que aconteceu no Iraque.
LV - Mas só aplicam a fundo a ideologia do livre mercado quando os enriquece...
Klein - Esse é outro paradoxo! Os idealistas do livre mercado o são só enquanto os enriquece! Quando outros começam a se beneficiar, então o aplicam, mas à sua medida.
LV - Logo veremos as construtoras espanholas pedir subvenções ao Estado.
Klein - Verão! E se alguém quiser entrar no negócio, tornam-se protecionistas. No fundo, a história da globalização é que os de sempre mantenham seus privilégios.
LV - Apesar de tudo, a senhora deveria admitir que a humanidade vive melhor que 50 anos atrás.
Klein - É verdade, porque fomos construindo a saúde pública, o ensino obrigatório e as aposentadorias e auxílio-desemprego que transformam a solidariedade em instituição e aumentaram e coletivizaram a qualidade de vida.
LV - Também precisam de reformas.
Klein - O capitalismo fundamentalista quer acabar com a social-democracia para voltar ao século 19: as plutocracias sem Estado.
Tradução: Luiz Roberto Mendes Gonçalves - La Vanguardia