quinta-feira, 8 de novembro de 2007

Os santos e as ONGs


O Monge João Maria foi um líder de uma espécie de ONG de sua época.

O Messianismo

Os movimentos messiânicos são aqueles que se apegam a um líder religioso ou espiritual, um messias, que passa a ser considerado "aquele que guia em direção à salvação". Os "líderes messiânicos" conquistam prestígio dando conselhos, ajudando necessitados e curando doentes, sem nenhuma pretensão material, identificando-se do ponto de vista sócio econômico com as camadas populares. Na região sul, a ação dos "monges" caracterizou o messianismo, sendo que o mais importante foi o monge João Maria, que teve importante presença no final do século passado, época da Revolução Federalista (1893-95).

O monge João Maria:


Durante muitos anos apareceram e desapareceram diversos "monges", confundidos com o próprio João Maria. Em 1912 surgiu na cidade de Campos Novos, no interior de Santa Catarina, o monge José Maria. Aconselhando e curando doentes a fama do monge cresceu, a ponto de receber a proteção de um dos mais importantes coronéis da região, Francisco de Almeida. Vivendo em terras do coronel, o monge recebia a visita de dezenas de pessoas diariamente, provenientes de diversas cidades do interior. Proteger o monge passou a ser sinal de prestígio político, por isso, a transferência de José Maria para a cidade de Taquaruçu, em terras do coronel Henrique de Almeida, agudizou as disputas políticas na região, levando seu adversário, o coronel Francisco de Albuquerque, a alertar as autoridades estaduais sobre o desenvolvimento de uma "comunidade de fanáticos" na região.
Durante sua estada em Taquaruçu, José Maria organizou uma comunidade denominada "Quadro Santo", liderada por um grupo chamado "Os Doze pares de França", numa alusão à cavalaria de Carlos Magno na Idade Média, e posteriormente fundou a "Monarquia Celestial".

As vezes o serviço prestado por algumas ONGs se assemelha bastante a esse "messianismo" e acaba fugindo totalmente do objetivo inicial de sua atuação. Outras ONGs se comportam como uma espécie de 2º governo e quando você recorre a ajuda, o atendimento fica bem perto de um serviço público mal feito, burocrático, arrogante e indiferente, enquanto que foram criadas justamente para fazer diferente, atuar em ações que os Governos não são capazes de fazer.
Os vigias desse quadro deveriam ser as próprias ONGs sérias, como em todas as áreas possuem sua fiscalização, não deveria ser diferente para as Organizações Não-Governamentais.


Crítico ataca aura de santidade das ONGs

Como combater a tentação de se considerar o salvador do Terceiro Mundo. "As ONGs sérias têm de denunciar as que são na verdade puras empresas", diz Jordi Raich, a voz crítica da santidade das ONGs, autor de "El Espejismo Humanitario"

Maricel Chavarría Em Barcelona

Todo ato solidário não deixa de ser um ato egoísta. Os profissionais da cooperação experimentam com freqüência uma grande satisfação ao voltar de uma temporada em campo, e entram em crise: acreditam ter encontrado seu lugar no mundo e, ao deixá-lo, se vêem deslocados. Se além disso esse trabalho traz consigo o agradecimento dos beneficiários e um reconhecimento social, o espírito crítico pode diminuir.

Os profissionais da cooperação têm muito presente essa combinação de fatores, por isso as ONGs destinam muitos recursos às entrevistas psicológicas com os candidatos para garantir que seu perfil não seja executivo demais nem assistencialista demais. E sobretudo que tenham certa estabilidade. No entanto, o magma de ONGs cujos líderes são amadores da boa vontade obscurece o panorama. O último escândalo no setor, protagonizado no Chade pela ONG francesa que tentava tirar do país uma centena de crianças com o fim de salvá-las, indica que as boas intenções, combinadas com a onipotência, têm resultados inaceitáveis.

"Você pode ser um bom líder, mas sem espaços de reflexão e pessoas ao seu redor que o questionem e o façam crescer, você estagna em sua dinâmica", diz Ignasi Carreras, diretor do Instituto de Inovação Social, que forma líderes de ONGs. "Os especialistas dizem que um bom líder da cooperação o é entre sete e dez anos. A partir daí sua rentabilidade diminui. Como líder de uma ONG, não é conveniente que prolongue seu cargo além de uma década, porque impede a entrada de gente nova, com um novo olhar", acrescenta o ex-diretor da Intermón Oxfam.

Os líderes e colaboradores com personalidade prepotente e atuações duvidosas abundavam em uma etapa pioneira da cooperação, explica Carreras. "A recompensa nas ONGs não é econômica: é que sua causa avance. A identificação com a causa é tão grande que se você a deixar sente que deixa a si mesmo, que deixa de ser", indica Carreras.

Isso ocorre quando há uma combinação de fatores: que haja uma fonte de inspiração, seja política, social, espiritual... que as causas pelas quais se trabalha progridam, isto é, que valham a pena; que as pessoas com as quais se realiza a atividade o enriqueçam e, finalmente, que se obtenha reconhecimento social.


"Milhares de colaboradores iniciam com a intenção de fazer o bem e no princípio sentem que ajudam a melhorar a vida das pessoas. Mas depois começa-se a indagar se serve para algo alimentar uma família em Darfur cercada de 400 mil pessoas que não se pode ajudar, e percebe-se que o problema é muito maior do que distribuir bolachas ou sandálias, e sente-se frustração. No entanto, ao voltar, sua sociedade o faz sentir-se um herói. Todos o elogiam, o que o faz sentir-se melhor consigo mesmo. E por que não, se outros sentem satisfação fazendo o mal? Mas é discutível." Quem fala assim é Jordi Raich, a voz crítica da santidade das ONGs, autor de "El Espejismo Humanitario" [A ilusão humanitária].


"Há de tudo no mundo da cooperação: os que se iniciam por crença religiosa; os que pensam que querem levar uma vida alternativa à sociedade de consumo; esses são os utópicos que querem mudar o mundo. Também há os que depois de 20 anos num escritório se cansam e se inscrevem porque idealizaram, e muitos outros que fogem de fracassos matrimoniais, profissionais...", explica Raich.


Da Arca de Zoé -a ONG apanhada no Chade- se desconhece se esconde uma ação humanitária mal compreendida, de gente ingênua que foi enganada por locais; se aplicou a premissa fundamentalista solidária de faça o que fizer, algo fica, ou se se trata de um puro negócio. Para Raich, "existem máfias e grupos disfarçados de ONGs que operam com adoções, tráfico de órgãos ou financiam grupos terroristas". "Há uma série de organizações que aproveitam essa aura de santidade que demos às ONGs", acrescenta.

"Tudo indica" , conclui Raich, "que cedo ou tarde a ilusão humanitária explodirá. As ONGs que se consideram sérias e transparentes, das quais se exigem garantias, deveriam ser as primeiras a denunciar esses casos e, no entanto, são as últimas, porque acreditam que, tratando-se de outra ONG, não podem opinar. Mas até que interfiram no assunto os escândalos se sucederão. A imagem de santidade será estilhaçada. E me alegro: isso deve se transformar em uma profissão, um trabalho. A proliferação de ONGs vai em detrimento das vítimas que se pretendem ajudar. Recursos são desperdiçados. O Estado deve não só registrar e auditar, mas fazer uma regulação de qualidade."

"Aceite que não pode fazer tudo""Não julgamos as razões pelas quais as pessoas querem trabalhar na Médicos Sem Fronteiras. Há muitos fatores, mas tentamos ver se suas expectativas são realistas e se entenderam bem o que é a MSF, pois muitas vezes se idealiza esse trabalho. As emergências são duras, tem-se muita responsabilidade e é preciso agüentar a pressão." Teresa Murray, responsável por recrutamento e seleção de pessoal da MSF, explica que a entidade mudou seu sistema: se antes insistia nos compromissos e valores, agora, sem esquecê-los, se baseia mais na competência.


"É mais eficaz medir a atuação do indivíduo no grupo, reflete mais as circunstâncias do terreno que uma entrevista e reduz o risco de enviar alguém que não se enquadre", diz Murray. Se uma personalidade prepotente passar no primeiro teste, depois há uma entrevista intensiva com o grupo na qual ela é observada. Já em campo o colaborador humanitário é avaliado a cada seis meses por seu supervisor.

Segundo Carla Uriarte, coordenadora de apoio social das equipes da MSF, uma mensagem chave para os candidatos é: aceite seus limites. "A onipotência de 'vou salvar o mundo' acontece com as pessoas menos experientes, mas o terreno é um banho de humildade". Não aceitar que a ajuda humanitária é limitada causa estresse, acrescenta Uriarte. "Mesmo que morram crianças, é preciso continuar dormindo e comendo, do contrário você começa a cometer erros."


Tradução: Luiz Roberto Mendes Gonçalves

Fonte: La Vanguardia